quinta-feira, 7 de abril de 2022

Civilizações Perdidas no Continente Negro: o imaginário arqueológico sobre a África Zimbabwe

Zimboe,
África Austral, “nas ruínas abandonadas conhecidas hoje como Zimbabwe”
Na virada dos séculos, em 1900, o escritor britânico realizou sua última incursão na temática,
com o romance 
Elissa or the Doom of Zimbabwe. Desta vez, não ocorrem heróis europeus na trama,
nem mesmo negros africanos, pois a história transcorre durante a Antiguidade, na cidade de Zimboe,
África Austral, “nas ruínas abandonadas conhecidas hoje como Zimbabwe” (Haggard, 2005).
xxiii Trata-se do único momento em que o autor trata diretamente uma cidade perdida com a matriz original
africana, inclusive, tratando ela como sendo “a dourada Ofir da Bíblia”, erigida pelos fenícios.
Mas não somente cananeus freqüentavam o local, como também egípcios, gregos e hebreus, ou seja, os
grandes povos do passado. As relações comerciais por meio de rotas de caravana são extremamente
destacadas.  
A publicação dos romances arqueológicos de Rider Haggard, de 1885 a 1900, coincidem com a polêmica das origens de Zimbabwe, a exploração desta região em busca de ouro e o interesse
geopolítico britânico na África Meridional.xxiv Como reforçador da legitimidade de uma presença e
exploração branca no continente negro, seus romances continuaram a ter influência considerável até
o fim do euroimperialismo.
xxv  Os representantes dos brancos sul-africanos, obviamente, não gostaram dos resultados das pesquisas de Randall-MacIver, apoiando um segundo livro do jornalista Richard Hall. Em Prehistoric Rhodesia, 1909, Hall volta a defender a origem fenícia, sendo Zimbabwe uma antiga colônia perdida.
  • Em nenhum momento os nativos africanos são relacionados aos vestígios arqueológicos encontrados. São meros personagens de um cenário coadjuvante, secundário, subalterno, que perfaz todo o romance. A África é o continente da aventura – dentro dos parâmetros artísticos inaugurados com a era colonialista – sendo seus animais selvagens, intempéries (desertos, tempestades, florestas, etc) e nativos, os perigos que o homem branco deve enfrentar em sua jornada para atingir a glória. Seja ela a descoberta de algum acidente geográfico, enigma arqueológico ou simplesmente a riqueza material, os nativos figuram no máximo como auxiliares não muito capacitados e quase sempre de caráter exótico.

O famoso viajante Sir John Mandeville, em seu livro Viagens, 1357, descrevia Sabá ou Meroa como uma rica e maravilhosa cidade da Etiópia. Além de jóias e ouro, Mandeville coloriu a representação do local como sendo rica em propriedades mágicas. As pessoas da região nasceriam amarelas e, com o tempo, mudariam para negras (Manguel & Guadalupi, 1987: 338).ii Um óbvio referencial de transladar para o desconhecido elementos familiares: facilita a identificação, e principalmente, o controle sobre o espaço geográfico estrangeiro. Para a mentalidade medieval, os locais e regiões de maravilhas eram muito comuns.                                                                                                                                              

  • Abundam livros e descrições envolvendo cidades imaginárias e habitantes do mesmo modo irreais e fascinantes (Le Goff, 2002: 116). Assim, identificar temas bíblicos na África poderia ampliar as fronteiras conhecidas, permitindo o controle da realidade visível. Isso explica a representação de Sabá em mapas portugueses a partir do século XIV. Um exemplo é o Atlas Catalão dos Cresques, 1375, onde a corte da rainha ocupa praticamente todo o norte da África, repleta ou de tendas ou de palácios acima de montanhas (Aguilar, 1967: 105).

Esse passa a ser o binômio típico de representação sobre o continente negro na Idade Moderna, seja na cartografia ou nos relatos geográficos e históricos: ou ele é povoado por humanos selvagens, ou possui algum reino perdido de governantes brancos.

No século XV, Henrique, o navegador, instruiu seus capitães para que encontrassem o rei-sacerdote em suas viagens pelo continente. No ano de 1497, em Moçambique, Vasco da Gama noticiou rumores de cidades do reino nesta região: “disseram-nos que Prestes João morava perto deste lugar e possuía ao longo da costa muitas cidades, cujos habitantes eram grandes mercadores e proprietários de enormes navios” (Apud: Hicks, 1993: 66). O século seguinte cristalizouo como uma realidade geográfica, mencionada em muitos mapas. Um dos mais representativos é o belo Atlas de Diogo Homem, 1558, elaborado com grande riqueza cromática para a rainha Maria Tudor.iv Nele, o sacerdote é representado com grande tamanho (comparado com a proporção em relação ao continente), acima de um portentoso trono, manto, coroa e cetro de ouro em forma de cruz,v acenando em direção a algumas tendas em sua frente (e com o olhar para o Oriente). Abaixo e lateralmente ao trono, numa estilização alegórica típica do período, montanhas cercam o sacerdote. Denotando que seu poder está acima de tudo, e que ele pode observar e governar a tudo (o litoral, o interior).vi Atrás do trono, em tamanho mais pequeno, surge um castelo de cor branca e com muitas torres. O sentido geral que podemos perceber nesta maravilhosa junção entre técnica e arte, é a exaltação do poder paradisíaco de um soberano branco e cristão em meio às terras selvagens.  O reino de Ofir, mencionado na Bíblia, tanto podia ser uma localidade
de grandes riquezas quanto um local paradisíaco. Era a região onde Salomão obtinha ouro, prata e
animais para sua corte:

  • Hiram enviou-lhe navios pilotados por seus súditos e marinheiros que conheciam o mar, junto com os servos de Salomão. Foram a Ofir e de lá trouxeram quatrocentos e vinte talentos de ouro, que entregaram ao rei Salomão (...) a frota de Hiram, que trouxe ouro de Ofir, trouxe também madeira de sândalo em grande quantidade e pedras preciosas (Bíblia, 2002: 484, 485)
Como não podia deixar de ser, a atração pelas riquezas sempre foi algo marcante para o
imaginário ocidental. Logo, Ofir foi muito buscada pelos exploradores, tanto no Oriente Médio quanto
na África.

Damião de Góis em 1501 declarou que na região próxima a Moçambique “encontra-se uma fortaleza construída com grandes e pesadas pedras; é um monumento estranho e maciço, cujo interior e exterior apresentam o mesmo aspecto” (Apud: Touchard, 1978: 317). Com certeza, tratavam-se das ruínas de Zimbabwe, antigo centro político do reino de Monomotapa,vii cujas primeiras informações os europeus agora estavam conhecendo, mas filtradas dentro de referenciais imaginários.viii Em 1552, o historiador português João de Barros publicou o primeiro volume de Décadas da Ásia, no qual relatava o que comerciantes árabes haviam lhe dito sobre uma grande construção de pedra no leste africano:
  • No meio do qual está uma fortaleza quadrada toda de cantaria de dentro e de fora muito bem laurada, de pedras de maravilhosa grandesa bem aparecer cal nas juntas dela: cuja parede é de mais de 25 palmos de largura, e a uma altura não é tão grande em respeito de largura. E sobre a porta do qual edifício está um letreiro que alguns mouros mercadores que ali forão ter homens doutos não souberam ler nem dizer que letras eram: e qual em torno deste edifício em alguns outeiros estão outros a maneira dele no laurametro de pedraria e tem cal, em que há uma outra torre de mais de 12 braças. A todos estes edifícios os da terra chamam Symbáoé, que acerca deles quer dizer corte, porque a todo lugar onde está Benomotápa chamão ali (Barros,s.d.: 374-375).
Sobre a porta da fortaleza haveria uma inscrição que nem os árabes nem os africanos foram capazes de decifrar, o que levou Barros a acreditar que a construção não tivesse origem africana mas fosse uma das cidades da rainha de Sabá, seguindo outras narrativas portuguesas da mesma época que identificavam o local como sendo Ofir (Hicks, 1993: 67; Tyson, 2005). 

A cartografia setecentista faz poucas menções objetivas a Ofir, Salomão ou Sabá – este é
um período de transição nas representações cartográficas, onde o racionalismo ocidental inicia um
processo de desconstrução dos antigos mitos geográficos, o que não impede que estes sobrevivam
em outras formas de representação. Tradicionais referências como as cidades fantásticas de
Eldorado, Paititi (América do Sul), Prestes João, Éden (África) desaparecem dos mapas europeus, 
enquanto novos estereótipos são criados por meio do colonialismo. Um exemplo é o
Mapa de John Senex, 1720. Toda a região que envolve o Lago Kariba até o monte Binga é denominada neste mapa de “Estates of Monomotapa”, inclusive, com a localização das ruínas de Zimbabwe, descritas com a legenda “Royal city”.xiii Com certeza, Senex baseou sua representação em informações lusitanas,  mas que não surtiram expedições ou crédito nos empreendimentos exploratórios e colonialistas a partir do século XIX. Mas com certeza contribuíram para a perpetuação de velhas imagens sobre a África. Desde a fundação da colônia do Cabo em 1652xiv, os europeus tinham uma base importante para as explorações da África Meridional e chegaram a ter interesse pela busca das minas de ouro de Monomotapa, mas até o início do século XIX não houve nenhuma descoberta significativa ou registro em narrativas de viagem sobre o assunto (Pratt, 1999: 83)

O imaginário sobre cidades perdidas africanas no Oitocentos
Nosso tema volta a aparecer no imaginário ocidental somente em meados da segunda metade
do Oitocentos. Disputada por várias nações européias, o continente vinha sendo explorado
continuamente em várias instâncias, especialmente as regiões interioranas abaixo do Equador.

  • A  Inglaterra favorecia estas expedições de geógrafos, geólogos, cartógrafos, antropólogos e simples nviajantes, que tanto forneciam preciosas informações para futuras explorações econômicas comlegitimavam a conquista do espaço selvagem.
As primeiras descobertas arqueológicas e a consolidação do imaginário
Apesar de conhecidas há muito tempo por europeus que viviam próximo a região, as ruínas de
Zimbabwe só foram popularizadas em meados da segunda metade do Oitocentos. Em 1868, um
missionário alemão chamado Alexander Merensky, visitou o sítio e posteriormente relatou suas
impressões para o geólogo Karl Gotlieb Mauch, que também morava no Transvall. Com ajuda de um
caçador de marfim chamado Adam Renders, Mauch conseguiu visitar as ruínas em 1871, publicando
depois sua descoberta no livro
Reisen in inner von Südafrika, 1874. Além da primeira reprodução de
plantas e detalhes técnicos dos monumentos, o geólogo alemão teorizou que atividades religiosas
poderiam ter sido efetuadas em torno das construções. Mas a grande polêmica em seu livro é a
respeito das origens de Zimbabwe, mais uma vez creditadas como as míticas minas de ouro de Sabá
ou Ofir:

  • Finalmente eu vi a uma pequena distância, uma construção aparentemente redonda, era construída com placas de granito sem união de cimento, a parede exterior tem um diâmetro de uns 146 metros, os nativos locais chamam as ruínas de Zimbabwexv (...) A região era desabitada antes dessa época. Tudo servia para convencer-nos que um povo branco vivia nesta região (...) Tirei umas lascas da viga principal. Comparando com a madeira do meu lápis, vi que era de cedro e que só poderia vir de Tenabalon. Ainda mais, somente os fenícios poderiam trazê-la para cá. Salomão usou muito cedro na construção de seus palácios e que essas ruínas são uma imitação das construções de Salomão em Jerusalém. E a grande mulher que as construiu só poderia ser a rainha de Sabá (...) não acho que eu esteja muito errado ao supor que a ruína no alto da colina seja uma cópia do templo de Salomão e que a construção da planície seja uma cópia do lugar onde a rainha de Sabá morou durante sua visita a Salomão (Apud: Morin, 1992a; Bahn, 1996: 176).
Imerso no processo colonizador ocidental, este explorador (e muitos outros futuramente) não
poderia conceber que os “primitivos” africanos teriam edificado tais maravilhas arquitetônicas. O mito
fenício juntamente com a imagem da rainha de Sabá e Ofir, com isso, possuíam uma utilização
claramente geográfica, pois concedia legitimidade para os europeus explorarem as mais diversas
riquezas naturais ou humanas do continente negro. Aproximou os ocidentais de um passado também
vinculado ao Mediterrâneo, origem da civilização moderna. Os colonos brancos viam a popularização
destas teorias com bons olhos, pois justificavam sua presença na região (Morin, 1992a.). As
concepções de Mauch foram ainda mais divulgadas com o livro
Map of the gold fields of south eastern
Africa,
1873, do explorador e pintor Thomas Baines e com o romance The ruined cities of Zululand,
1896, de H.M. Walmsley

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